16.4.11

500 medos

Celso de Almeida Jr.


Publicado no jornal A Cidade - Coluna Política & Políticos
Ubatuba-SP, 22 de abril de 2000


O povo brasileiro é corajoso.
Sabe lá o que é empregar-se na construção civil, dormir em alojamento, pendurar-se em andaimes em alturas espantosas?
E o que dizer da turma da estrada?
Caminhões enormes, mecânica complexa, quebrando, entortando, fundindo. Pneus aos montes, furando, estourando, murchando.
Estradas sinuosas, solidão apertada, perigo a espreita.
E na sala de aula?
Escolha algumas escolas assustadoras. Conheça a garotada desbocada, a escrita indecifrável, os atrevidos de plantão e a destruição contínua.
Vá visitar os hospitais.
Estoque baixo, gritos intensos, indignação das famílias, gente estressada.
Ponha um uniforme de polícia.
Vá encarar bandido. Seja gentil com ele. Peça educadamente para abaixar a arma. Explique que aquela atitude não leva a nada. Sonhe com um diálogo civilizado. Dependendo da carga de cocaína que ele tiver no sangue, possivelmente sua conversinha será um passaporte para o céu.
Já viu estivador? Visitou algum porto? Veja a força daquela gente. Experimente um dia naquele ritmo. Volte para casa bem humorado e feliz com a carga pesada que levou nas costas. Veja se uma massagem resolve a dorzinha que fatalmente irá sentir.
Gosta de escritório?
Papelada sem fim, despachos detalhados, concentração total, olho nas vírgulas. Se for advogado, então, aí melhora. Que delícia deve ser encarar uma decisão maluca de alguma juizinha recém-formada, geralmente prepotente, feliz pelo papai desembargador que esclarece qualquer pepino, via Embratel.
E empresário brasileiro? Comerciante, mercador, não interessa.
Estou falando de quem gera emprego.
Dá para encarar ser esfolado pelos governos, padecer com a Justiça do Trabalho e peitar o gerente do banco?
Quinhentas linhas eu precisaria para relacionar o dia-a-dia desse povo fantástico, resignado, que se contenta com o futebol e o carnaval.
Gente boa, trabalhadora, inteligente e criativa que faz do país uma das regiões mais adoradas do mundo. O turista estrangeiro apaixona-se pelo jeito, pelo calor e pela simpatia do brasileiro.
Mas falta alguma coisa.
Há coragem para encarar a vida mas há um medão para questionar autoridades.
Aceita-se tudo com passividade.
Treme-se diante de um delegado de polícia.
Guarda de trânsito é chamado de doutor.
Vereador é tratado a pão-de-ló e prefeito...ah, este é venerado: "Como ele é bonzinho. Pegou meu filho no colo. Cascalhou minha rua. Está coletando o lixo."
Esse povo encantador perde a magia nestas horas.
Assume o lado cordeirinho e aceita ser roubado, espoliado, maltratado, transformado em capacho e marionete de gente perigosa e sem escrúpulos.
A saída?
Educação em massa para todos e traduzir o significado de cidadania.
Ao concordar que estamos deitados em berço esplêndido é preciso ter consciência de que o hino nacional refere-se a natureza fantástica.
Não é para embalar ao som da passarada e roncar gostoso imaginando que as coisas irão "consertar por si só".
Vamos honrar os versos da música mais amada e mostrar que os filhos do Brasil não fogem a luta.
Que venham mais 500 anos e que os brasileiros do amanhã possam se orgulhar dos brasileiros desta geração.

PS: Herbert Marques foi generoso comigo em seu último artigo. Sou grato por suas palavras. Ter o incentivo de amigos como ele garante o entusiasmo para continuar escrevendo. Minha sorte é que a vizinhança é muito boa. Assim, fica fácil.

Aquarela do Brasil
Ary Barroso
João Gilberto, Caetano Veloso e Gilberto Gil